Nas reuniões clandestinas dos anos 1960, Vera Silvia
Magalhães, brincando, sugeria como agenda: quem somos, onde estamos e para onde
vamos? No início desta campanha presidencial, creio que seria razoável abordar
esse tema, desde que se desçam, passo a passo, os degraus da abstração.
Na nossa jovem democracia, os governos levam enorme vantagem
na partida: arrecadam fortunas dos empresários amigos e gastam fortunas do
Tesouro com propaganda sobre realizações e personalidade do governante. As
despesas da viagem de Dilma Rousseff a Roma, por exemplo, deveriam ser
computadas nos gastos de campanha.
Como candidata montada em milhões de reais, Dilma é um
artefato urdido pelo PT, por especialistas em marketing, um cabeleireiro de
origem japonesa, cirurgiões plásticos e consultores de estilo. A rigidez dos
ombros, o cansaço no andar indicam que está sobrecarregada pela máscara
afivelada ao seu corpo. E algumas frases desconexas revelam que gostaria de
deixar de fazer sentido, como os garotos que escreveram receita de Miojo ou o
hino dos Palmeiras em suas composições no Enem.
Dilma viajou para ser fotografada ao lado do papa Francisco
e dizer: "O papa é argentino, mas Deus é brasileiro". Nada melhor
para uma campanha: posar ao lado do papa, brincar com a rivalidade com os
argentinos, voltar para Brasília ainda mais popular do que saiu. A opção pelo
luxo, na Via Veneto, no momento em que a Igreja fala de humildade não importa.
Uma coisa é a Igreja, outra é o governo democrático popular, sem escrúpulos
pequeno-burgueses, na verdade, sem escrúpulos de ordem alguma. Não importa que
os estrangeiros vejam na sua frase uma certa dificuldade nacional de superar o
complexo de inferioridade. Tudo isso é problema para a minoria que não tem peso
nos índices de popularidade. O povo está satisfeito, as pesquisas são
favoráveis e é assim que se pretende marchar para 2014.
Lula e José Dirceu foram heróis da vitória em 2002. Dirceu
hoje trabalha para empresas junto ao governo. Lula viaja prestando serviços às
empreiteiras. Lembram um pouco a desilusão dos jovens rebeldes no filme O Muro,
de Alan Parker, inspirado na música de Pink Floyd. Um dos ídolos da rebeldia
juvenil aparece no final melancolicamente vestido como porteiro de hotel,
chamando táxis, ganhando gorjetas.
Lula fazia discursos contra o amoralismo do capital, a
influências das empreiteiras, e aquelas frases de comício: um sonho sonhado
junto não é sonho... Confesso que aplaudia e admito uma dose de romantismo
incompatível com a minha idade. Muitos ídolos do rock, pelo menos, morreram de
overdose. Na esquerda brasileira, passaram a trabalhar para a Delta ou viajar a
soldo da Odebrecht. A popularidade do governo intimida e os candidatos de
oposição não fazem um contraponto, mas se definem como uma variação melódica.
Quem tem boca (no governo) vai a Roma. Depois é preciso dar
uma olhada na Serra Fluminense, verter aquelas lágrimas de praxe, no melhor
ângulo e na melhor luz, para as inserções na TV. A mãe do PAC deveria visitar
as obras destinadas ao Morro do Bumba com o carinho com que as mães visitam os
filhos no presídio, os que deram errado mas nem por isso são esquecidos.
O governo costuma dizer que a oposição mais consistente é a
da imprensa. Essa é sua desgraça e sua sorte. O incessante turbilhão das
notícias obriga a imprensa a mover-se sem parar para cobrir o que acaba de
acontecer. Sobra pouco tempo para retirar esqueletos do armário e voltar aos
personagens de nomes bizarros que povoam os escândalos nacionais. A única
maneira de quebrar a hegemonia perversa que contribuiu para devastar moralmente
o Congresso, estreitar nossa política externa, confinar a economia nos limites
do consumismo é fortalecer uma oposição real. Ela não se pode ater ao horizonte
de uma só eleição. Precisa trabalhar todos os dias, imediatamente após a
contagem dos votos.
Em política não existem eleições ganhas antecipadamente. Mas
é preciso não contar com milagres. Mesmo eles só favorecem os que estão de pé,
os que cedo madrugam. As pesquisas dizem que a maioria dos brasileiros está
contente com o governo Dilma. A sensação de bem-estar impulsiona-os a aprovar o
governo e ignorar as profundas distorções que impõe ao País.
Não é a primeira nem a última vez que a minoria se coloca
contra uma onda de bem-estar fundamentada apenas no aumento do consumo. No
passado éramos bombardeados com a inscrição "Brasil, ame-o ou
deixe-o". Agora ninguém se importa muito se você ama ou deixa o País.
O mecanismo de dominação é consentido. Nosso universo se contraiu
e virou um mercado onde tudo se compra e se vende, secretarias negociam ilhas,
ex-presidentes cobram dívidas de empreiteiras e, na terra arrasada do
Congresso, o pastor Marco Feliciano posa fazendo uma escova progressiva.
Parafraseando Dilma, são necessárias medidas mais drásticas para tirar essa
gente de lá.
Fernando Gabeira