Na última semana, o governo federal
informou sua intenção de importar médicos de Cuba através de um convênio
realizado com o país tendo a intermediação da Organização Panamericana de Saúde
(OPAS). Tal ato se daria através do programa “Mais Médicos”, criado através da
Medida Provisória 621/13.
Seria de espantar a urgência da matéria,
especialmente quando lembramos que o atual governo completa 11 anos no poder.
Apesar da retórica inflamada de seus defensores (alguns muito bem remunerados),
é fato que a saúde pública no Brasil está na UTI a tempos. Tanto que uma das
bandeiras dos protestos de junho foi acerca da qualidade da saúde no país. É
inescapável: se a situação da saúde no Brasil chegou ao ponto que está, de quem
é a responsabilidade? Quem geriu a saúde pública brasileira nos últimos anos?
De toda forma, chegamos aqui: o governo
anuncia um programa “emergencial” para enviar médicos estrangeiros aos rincões
do país. Porque faltam médicos? Não. Porque, segundo as declarações oficiais,
os médicos brasileiros não querem ir trabalhar nesses locais. Isso não obstante
o Conselho Federal de Medicina defender a tempos criação de uma carreira de
estado para os médicos, especialmente para aqueles enviados para os locais mais
longínquos do país. Não entrarei nesse debate, mas recomendo a leitura do
artigo do médico João Paulo de Faria (link http://medicoliberal.blogspot.com.br/2013/08/mais-fatos-e-menos-propaganda-verdade.html?spref=fb ). No artigo,
rebate-se a afirmação do governo acerca da necessidade da contratação dos
profissionais estrangeiros. Nosso objetivo aqui é tratar da (i)legalidade da
medida.
Ora, conforme informado acima, o programa
“Mais Médicos” foi criado através da MP 621/13. Poderíamos questionar a
legalidade de uma medida provisória tratar de matéria que não terá efeito
imediato. Aliás, há uma ação no STF questionando a matéria. É uma velha
discussão sobre quando a medida provisória é realmente urgente e relevante.
Carece de regulamentação adequada a norma constitucional que determina o juízo
prévio dos pressupostos da MP (art. 62 § 5º). De toda forma, não obstante haver
ou não tal vício formal, há vários outros problemas na medida.
Em primeiro lugar, a própria importação dos
profissionais cubanos. Conforme informado pelo ministério da saúde, foi firmado
convênio com o governo cubano sobre a importação de mão de obra médica da ilha.
Pergunta-se: onde está este convênio? Ele foi enviado ao Congresso? Segundo
determina a Constituição da República em seu artigo 49, inciso I, é de
competência EXCLUSIVA do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais
que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.
Qualquer gasto realizado por conta de convênio internacional sem aprovação do
congresso nacional viola a constituição. Na MP que criou o programa há um
dispositivo que permite a realização de “acordos
e outros instrumentos de cooperação com organismos internacionais, instituições
de educação superior nacionais e estrangeiras, órgãos e entidades da
administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, consórcios públicos e entidades privadas, inclusive
com transferência de recursos”. Apesar desta previsão, não exclui a
necessidade de apreciação pelo Congresso do texto do convênio celebrado. Com a
não apreciação deste convênio pelo Congresso, se houve ou houver eventual
dispêndio do erário, o responsável incorrerá na lei de improbidade. Que o
Ministério Público Federal fique de olho na questão.
Outra ilegalidade flagrante é acerca do
regime de trabalho dos médicos cubanos. Os profissionais que vierem de Cuba
trabalharão sob o regime trabalhista, salarial e de segurança social de Cuba,
conforme noticia a própria imprensa oficial cubana (
http://www.prensalatina.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1794311&Itemid=1
). Nova ilegalidade. O regime de trabalho, ainda que sob o verniz de “bolsista”
é regulamentado pelas leis e regras de nosso país. Salvo aqueles que trabalhem
diretamente para embaixadas, consulados ou escritórios de representação de
entidade de direito internacional público reconhecida pelo Brasil, todo
indivíduo que exerça atividade laboral deve se submeter às leis nacionais.
Dessa forma, tal vinculação direta com o sistema legal cubano viola a lei e a
soberania nacional. Isso nos traz a outro questionamento: os médicos cubanos
que aqui se estabelecerem terão pleno direito de ir e vir? De se relacionarem
socialmente nas localidades para onde forem enviados? Nas missões cubanas em
outros países sabe-se que os médicos são proibidos de viajar ou de manterem
qualquer vínculo com a população civil do local. E são frequentemente monitorados
por pelos médicos chefes da missão. Os mesmos que andaram dando entrevistas na
chegada com elogios ao governo cubano e seu desinteresse no salário.
Do modo como vem tratando a questão, o
Brasil está pagando a ditadura cubana pelo serviço escravo (sim, escravo) de
seus médicos. É situação similar a dos bolivianos que constantemente são
aliciados como mão de obra escrava no Brasil. Com o agravante que os parentes
dos médicos são proibidos de vir ao Brasil, ficando refém em Cuba.
O que nos traz a outro problema: a situação
de desigualdade entre outros profissionais importados. Os médicos cubanos
importados receberão um salário “a critério do governo cubano”. Ou seja, se
Cuba quiser pagar o salário de médico pago em Cuba (cerca de 30 a 60 dólares) esse será o
valor pago. Tal postura viola a legislação trabalhista do Brasil. Qualquer
trabalhador no Brasil deve receber a mesma remuneração pela realização do mesmo
trabalho. Se um espanhol vai receber 10 mil reais, um cubano deve receber 10
mil reais. É um princípio de equidade que rege a relação de trabalho no Brasil.
Tal princípio não pode ser violado pelo próprio governo.
Mas a questão mais ventilada (e com razão)
pela classe médica é a ausência de aprovação no Revalida para o trabalho dos
profissionais médicos formados no exterior (cubanos ou não). Trata-se de um
questionamento válido. Ora, se há um método estabelecido que tenha a função de
garantir a qualidade da formação profissional, por que ele não é usado? Nenhum
médico com quem conversei se opõe a importação. O que questionam é o modo “extra-ordinário”
com que tal importação está sendo feita. Por que governo não fez um chamamento
público internacional para a realização da prova? Isso comprovaria a qualidade
da mão de obra externa e ao mesmo tempo garantiria a vinda dos profissionais
sem maiores questionamentos. Até onde se sabe, a portaria que deu origem ao
Revalida não foi cancelada, portanto, ainda está em plena vigência.
Pode se questionar também a falta de
realização de concurso público para o provimento dos cargos médicos. Essa é a
forma usual e determinada pela constituição para a contratação de mão de obra
pelo estado. Não temos uma emergência, na qual de súbito precisamos de um
número imediato de mais profissionais, tal como um desastre natural ou uma
guerra. Se a matéria fosse tão urgente, o governo federal deveria tê-la
realizado 11 anos atrás, quando tomou posse. Nessa época a proporção de médicos
per capita era menor do que é hoje.
Fosse realizado concurso público, com
garantias ao aprovado e uma carreira estabelecida, os médicos brasileiros já
sinalizaram que participariam. Mas a realização de concurso leva tempo e exige
organização. Não obedece ao calendário de interesses (eleitorais) em jogo. Ainda assim, não
há justificativa legal para a não realização de concurso público.
E mais: com o estabelecimento do médico de
forma definitiva no cargo, aumentaria a cobrança por condições de trabalho. Que
é outro ponto questionado pelos médicos. Como trabalhar sem condições? Um
médico e uma cadeira e uma mesa podem fazer muito pouco para a saúde de
pacientes. Não mais que um agente de saúde. Dessa forma, melhor seria que o
governo reforçasse o programa que leva agentes de saúde ao interior, para
ensinar noções de higiene e prevenção de doença. Sairia mais barato e teria o
mesmo efeito prático. Ou que utilizasse este dinheiro na construção de unidades
de saúde e hospitais de referência, que é para onde acabam sendo levados os
pacientes.
Por fim, o debate deve se dar sem os
preconceitos com que vem sendo realizado, especialmente por parte do próprio
ministério da saúde, que parece querer esconder sua responsabilidade na atual
situação crítica que a saúde pública encontra-se no Brasil. Os médicos
brasileiros são parte fundamental da estrutura de saúde. Tratá-los de forma
preconceituosa, especialmente por aqueles que não hesitam de recorrer aos
melhores hospitais do país quando necessário soa tão falso quanto o discurso
dos médicos cubanos que vieram de forma livre. Se exigem o melhor para os seus,
que exijam qualidade também para o mais pobre, que é tão cidadão quanto o
ministro ou a presidente da República.
Estes são alguns apontamentos. A questão é
de tal forma controvertida e o programa foi feito de maneira tão súbita que com
certeza há vários outros pontos questionáveis, como por exemplo, a isenção de
imposto de renda conferida aos médicos contratados. De toda forma, o intuito
deste artigo é contribuir para o debate.
Felipe Autran é advogado especializado em Direito Público.
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